Nuno Guilherme Catarino Anselmo

O Regimento de Artilharia Pesada N.º2 (RAP2), actualmente Regimento de Artilharia N.º 5 (RA5), participou activamente e com um volume de Forças consideráveis nas Operações do 25 de Abril de 1974, contribuindo de forma significativa para o sucesso de toda a Operação.

Tomei parte, como Capitão, na preparação da participação do RAP2 no 25 de Abril de 1974, juntamente com outros militares, o Major de Artilharia Engrácia Antunes e os Capitães do QP apresentados na Unidade, dos quais se mencionam: Luís Gonzaga Freire Antunes; Eduardo da Conceição Santos e João António Heitor Alves, com a presença em várias reuniões no Porto e em Lisboa e, finalmente, na de Cascais, em 5 de Março de 1974. No RAP2, era comandante o Coronel Fernando Dias Branco, as reuniões decorriam com alguma periodicidade nos quartos dos Capitães.

Na manhã de 24 de Abril, saí do RAP2 para ir ter com o Major Corvacho do QG/RMNorte, no sentido de me ser entregue documentação que interessava à Unidade para a sua colaboração nas missões que lhes tinham sido atribuídas.

Transmitida aos Oficiais do QP, comandantes das sub-unidades, a indicação recebida de que seria nessa noite o desenrolar das operações, cada um realizou as tarefas que lhes competia para o efeito.

Como comandante da CCS, eu e o Oficial de transmissões da unidade, a titulo de experimentar os meios rádio existentes e o respectivo pessoal, realizámos um exercício de transmissões com os rádios que nessa noite foram distribuídos ao pessoal que iria sair da Unidade.

Após o jantar foi ainda efectuada uma breve reunião, no Porto, nas imediações da Câmara Municipal, em que participaram os Capitães que pernoitavam no quartel e o Major Engrácia Antunes que residia fora do quartel, para ultimar os pormenores.

Pelas 22H00 de 24 de Abril, os Capitães do RAP2 reuniram-se no meu quarto para ouvirem, pela rádio Alfabeta dos Emissores Associados de Lisboa, a primeira senha — “E depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, que deu inicio às operações. Seguiram depois para as instalações do piquete (na altura eram num parque de viaturas junto à sala de Oficiais e em frente à Igreja da Serra do Pilar), onde subtraíram as armas com que actuaram.

Depois de recolhidas as armas do piquete, o Oficial de Dia, Capitão Eduardo da Conceição Santos bateu à porta do quarto do Comandante, que dormia na Unidade, e disse: “ tenho mensagem de grau secreto e imediato”, o que permitiu que viesse à porta e fosse confrontado com a ordem de detenção dada pelo Capitão de Artilharia Freire Antunes, escolhido pelos Oficiais pela frontalidade e determinação. O Comandante não querendo acreditar no que ouvira afirmou “…você está a brincar comigo”, ao que o Cap. Antunes lhe respondeu: “nem pouco mais ou menos e avisamos que não vale a pena tentar ligar qualquer dos telefones que tem no quarto, militar ou civil, pois nós já os desligámos porque cortámos os fios . Não faça nada, que nada de mal lhe será feito”.

Pelas 00H20, o programa “Limite” da Rádio Renascença transmitia a canção “Grândola Vila Morena”, de Zeca Afonso, sinal confirmativo de que as operações militares planeadas pelo MFA estavam em marcha, para que os militares dessem início às operações previstas. Foi de novo no meu quarto que os Oficiais do RAP2 ouviram esta senha, que confirmava que tudo se encontrava a decorrer como previsto.

A partir desta altura, foram alertados os Oficias e Sargentos das diversas Baterias que iriam participar nas operações, tendo-lhes sido dada a conhecer a situação e deixando ao seu próprio critério a sua participação. Entre eles, o Oficial de Transmissões da unidade que, horas antes, estivera a participar no exercício de transmissões, compreendendo finalmente o motivo do referido exercício, que tinha sido o único até então realizado na unidade.

Não houve recusa por parte de qualquer graduado, tendo todos participado.

Às 4h45, uma força de uma Companhia de Artilharia (CART 6252) que se encontrava no RAP2, mobilizada para o Ultramar, comandada pelo Capitão de Artilharia Heitor Alves, como constava no planeamento, efectuado previamente, ocupou o Centro Emissor de Miramar (Porto) do RCP.

Uns dias antes do 25 de Abril, estive no local a fazer o reconhecimento da Estação Emissora e a gizar o modo de actuar, com o Major Corvacho e o Capitão Heitor Alves, que foi quem ocupou a Emissora.

Às 06H50, sob as ordens do MFA, uma bateria de obuses do RAP2, sob o comando do Capitão Freire Antunes (falecido em Agosto de 1985), toma posição nas entradas da Ponte da Arrábida, no Porto.

Pelas 07h30 foi ocupada a Ponte D. Luís por forças de uma unidade que se encontrava apresentada no RAP2 com destino ao Ultramar, tendo, posteriormente, parte dessa força sido deslocada para os Estúdios da RTP (Monte da Virgem), em Vila Nova de Gaia, para proceder à sua ocupação, dado a unidade a quem competia tais missões não as ter cumprido como planeado.

Ao fim da tarde, após autorização do Comandante, saí da Unidade com uma força constituída por Oficiais, Sargentos, Cabos Milicianos e Praças, num total de 29 homens, para contacto e controlo da população, se necessário, e verificar a situação na ponte D. Luís. Como a situação, naquele local, se mantinha sem qualquer tipo de problemas, deslocámo-nos de seguida para a Avenida dos Aliados na cidade do Porto (ao princípio da noite), após passagem pelo QG/RMNorte, a qual se encontrava completamente cheia de pessoas, tendo começado a surgir rumores sobre a intenção da população se deslocar, com alguma animosidade, para as instalações da antiga PIDE/DGS no Porto (Rua do Heroísmo/ Largo Soares dos Reis), hoje Museu Militar do Porto. Face a esta situação e por ter alertado superiormente o QG/RMNorte, recebi indicações no sentido de me deslocar para as referidas instalações, para garantir a segurança.

Pelo caminho fui alertado pela população que estava na rua, que elementos da PSP, que se encontravam numas instalações próximas, tinham disparado e que havia polícias na rua. Como sabia que a PSP tinha prometido que, ainda que não aderisse ao Movimento, também não actuaria contra e que se manteria dentro das suas instalações, não saindo para a rua, pedi que dissessem a um elemento da PSP para vir falar comigo. Efectivamente, veio falar comigo um guarda a quem perguntei por que razão estava na rua, tendo ele informado que receberam ordens do seu Comandante, Coronel Santos Júnior. Disse-lhe se poderia pedir ao Sr. Coronel para vir falar comigo, facto que se verificou. Perguntei então ao sr. Coronel Santos Junior qual a razão, dado que a PSP nos garantira que não apoiando também não estavam contra e que tinham prometido não saírem para a rua, para ainda permanecerem elementos da PSP na rua e por que razão tinham disparado contra a população. A resposta que recebi foi amigavelmente a seguinte pergunta “o que é que o sr. Capitão quer que eu faça? Diga o que quer, que eu faço”. Respondi-lhe simplesmente: “façam aquilo que prometeram, que é não intervir e saírem da rua, permanecendo dentro das vossas instalações” E assim o fizeram e nada mais se passou, que eu soubesse, naquela zona entre a Praça dos Aliados e a sede da DGS no Porto, passando por umas instalações da PSP que não posso precisar neste momento o seu local, mas que ficavam no caminho

Lá ficámos toda a noite de 25 para 26 de Abril, nada tendo acontecido de especial, para além de uma tentativa frustrada da fuga de um agente da PIDE/DGS, que acabou por ter de ser encaminhado para o hospital.

À medida que a noite ia decorrendo a população, aos milhares, que se encontrava no local e que inicialmente ocupava praticamente todos os passeios existentes no largo onde se localizavam as instalações da PIDE/DGS, à excepção do passeio anexo às mesmas, foi-se desmobilizando, restando ao início da manhã de 26 de Abril ainda algumas pessoas, tendo um senhor afirmado que só sairiam dali quando as instalações fossem reocupadas pelos militares com essa missão. Queriam assistir ao “desmantelar” da organização que tanto detestavam.

Fomos rendidos cerca das 10H00 de 26 de Abril por Forças do QG/RMNorte.

Na tarde de 26 de Abril, militares da Bateria do Capitão Antunes, que ocupara a Ponte da Arrábida na madrugada de 25 Abril, e da CART 6252 do Capitão Heitor Alves, que ocupara o Centro Emissor de Miramar (Porto) do RCP, participaram ainda na manutenção da segurança às instalações da PIDE/DGS, evitando que a população entrasse nas mesmas, com a promessa pessoal do Tenente Coronel Carlos Manuel Azeredo Pinto Melo e Leme do QG/RM Porto de que os elementos da PIDE/DGS iriam ser devidamente julgados.

Para além da participação empenhada dos Oficiais do RAP2 na preparação e condução das operações do 25 de Abril, é de salientar a prestimosa e generosa colaboração dos Sargentos e a participação empenhada das Praças da Unidade, na execução das operações do RAP2, no 25 de Abril de 1974.

Nuno Guilherme Catarino AnselmoCoronel de Artilharia Reformado.

Nuno Miranda

Encontrei esta fotografia no Google há alguns anos, e nunca mais consegui localizar de novo o link. Trata-se de uma fotografia da entrada do Sporting Clube de Cascais, depois de ocupado, com um comentário provavelmente de um dos sócios: “o vale tudo” Dezembro/1974.

A data deve estar errada, pois a ocupação foi em 30 de Março de 1975, mas de resto é um documento interessantíssimo, nem que seja pela interacção amigável entre o soldado e o miúdo.

Foto

 

Luís Pimentel

À data, tinha 30 anos, capitão.

No dia 25 de Abril, comandei a força do Campo de Tiro da Serra da Carregueira (CTSC) que, no plano de operações do Movimento das Forças Armadas (MFA), teve por missão ocupar a Emissora Nacional (EN), na Rua do Quelhas, em Lisboa. Essa missão foi cumprida pelas 03h15, ou seja, cerca de 15 minutos depois da “hora H” (que é como se designam as horas determinadas, nos planos de operações militares, para início de concretização das missões atribuídas).

Foi por essa hora que telefonei para o posto de comando do MFA, instalado na Pontinha, e no qual fui atendido (salvo erro) pelo próprio Otelo. Informei-o, dizendo: «Estamos em Tóquio», que era o código estabelecido para os estúdios da EN. «OK. Parabéns e um abraço», respondeu ele.

Tive como 2º comandante da força o (então) capitão Frederico Reis Morais, do meu Curso da Academia Militar, o qual desempenhou uma acção empenhadíssima e muito eficiente. Antes disso, havíamos também já participado juntos nas várias reuniões de oficiais que deram origem e corpo ao MFA.

À acção do CTSC aderiram 5 dos oficiais milicianos que aí estavam colocados e que atempadamente havíamos contactado, os quais, consciente e decididamente, se integraram na preparação e na execução da missão que nos fora atribuída, demonstrando consciência quanto à sua importância, prontidão para os sacrifícios que lhes fossem exigidos e capacidade de comando e de entrega.[1]

Quanto aos praças (isto é, os cabos e soldados), o pequeno grupo de 40 militares, que na madrugada do dia 25 de Abril fomos acordar e organizámos, eram uma amálgama de especialidades e funções e não o todo homogéneo de uma unidade “normal” de atiradores. Isso devido à especificidade do CTSC que era, fundamentalmente, um vasto terreno utilizável pelas outras Unidades para a execução de treino tático e de tiro, tendo apenas em instrução formativa uma pequena sub-unidade. Contudo, deve ser realçado que todos aqueles 40 praças se empenharam com verdadeiro espírito de combate, revelando um magnífico comportamento em disciplina, espírito de sacrifício, dignidade e entreajuda.

Vou aqui destacar apenas um aspecto específico e diferente da nossa acção de comando antes de partirmos para a EN. Ao contrário do que fez o Capitão Salgueiro Maia (que, antes de sair de Santarém, informou as suas tropas do que iam fazer e apelou para irem a Lisboa impor «o fim do Estado a que isto chegou…» e, felizmente, não teve problemas com isso), eu e o Reis Morais não revelámos aos nossos soldados qual a finalidade real da missão que iríamos cumprir. Apenas o havíamos feito, obviamente, aos oficiais milicianos que previamente contactáramos e se prontificaram a participar nessa missão. Aos soldados, demos a perceber que iríamos cumprir uma missão normal e ao serviço do regime vigente. Porquê? Muito simples: primeiro, porque queríamos afastar o risco de, divulgada a missão, surgirem logo divergências e não-concordâncias que pusessem em causa o respectivo cumprimento. Se tal acontecesse, seria um descalabro. O que fazer nessa situação? Avançar, ainda mais debilitados, só com os aderentes?… E deixar “para trás” os não aderentes, pondo em risco evidente tanto a nossa acção como a de todo o MFA?… Não era, técnico-militarmente, uma solução fiável.

Segundo, e igualmente importante: porque queríamos que, se algo corresse mal e fôssemos derrotados e/ou detidos, apenas eu e o Reis Morais fôssemos responsabilizáveis. Queríamos que os nossos soldados ficassem ilibados e protegidos de retaliações (assim como, também, os oficiais milicianos, porque poderiam usar as mesmas desculpas e argumentos). Isto, porque todos poderiam, credivelmente, dar-se por convictos de que estavam numa operação em favor do poder vigente e ao serviço dele, assim se defendendo junto das autoridades e da PIDE, vincando saber apenas que estavam numa missão normal e acreditar nisso. E, para os apoiar, como era nosso propósito, nós, capitães, confirmaríamos sempre a versão deles, até com recurso a uma ordem de operações falsa, atribuída ao Governo Militar de Lisboa, que eu tinha previamente forjado para o efeito.

Portanto, foi só quando já estávamos na EN e com esta completa e seguramente ocupada, que revelámos aos soldados e lhes explicámos a verdadeira e concreta missão que acabavam de cumprir. No final, dissemos-lhes: «Quem não concordar, pode, deixando aqui o armamento, ir-se embora e regressar ao quartel!…».

Ninguém aceitou: todos aderiram e com total seriedade e genuína entrega!

Ocupar a EN foi um objectivo importante para o MFA porque essa estação de rádio era, de entre as então existentes, a mais poderosa do «Estado Novo», isto é, do regime político instalado. Impedi-la de actuar em favor desse regime e colocá-la ao serviço do MFA e da revolução foi, realmente, muitíssimo importante. E isso foi feito também, obviamente, com a voluntária e decidida colaboração posterior de alguns técnicos e locutores da Emissora que, para tal, de pronto se disponibilizaram.

Será de relembrar aqui um aspecto peculiar e bizarro da ocupação das instalações. Quando, vindos da Carregueira, estacionámos as viaturas na Rua do Quelhas em frente ao, então, ISE (Instituto Superior de Economia, hoje ISEG), que ficava ligado à EN (e que, actualmente, a integra como sua instalação universitária), deparei com dois polícias, de capacete e armados de pistola-metralhadora, estacionados em frente da porta. Fiquei naturalmente apreensivo, pensando: «Queres ver que o MFA foi detectado e os objectivos já foram ocupados pelas forças do regime?!…». Se essa fosse a situação real, a nossa necessidade de conquistar a EN por via do combate seria terrivelmente sacrificadora ou mesmo inalcançável, face à dificuldade técnico-táctica de atacar o edifício e de debilitar a força aí instalada. Bem, dirigi-me aos dois polícias e disse-lhes: «Tenho aqui uma Ordem de Operações do Governo Militar de Lisboa para ocupar a Emissora Nacional.» E, naturalmente, mostrei-lhes o documento desse cariz que, como referi acima, eu próprio tinha forjado, precisamente, para enganar os oponentes e para dar sustentabilidade à tese dos meus acompanhantes de que julgavam estar a cumprir ordens do poder instalado e não a participar na revolução do MFA. Fiquei completamente feliz e descansado, quando um dos agentes policiais, calma e amigavelmente, me respondeu: «É já essa porta aí abaixo, à esquerda.»

E, realmente, foi só tocar à campainha e entrar.

Para terminar, será de dizer que a parte mais gratificante da nossa acção ocupante da EN nos veio do comovente e carinhoso apoio que a população civil nos manifestou por diversas formas (distribuição de comida, entrega de cravos vermelhos, aplausos, etc.). E sem o menor gesto de hostilidade, bem pelo contrário. Essa foi, inequivocamente, uma excelente “medalha” com que nos “condecoraram”.

Coronel de Infantaria, actualmente reformado

[1] O TEN Milº Silva Pinheiro e os ASP Milº Lopes Simões, Alves Moreira, Santos Trindade e Cruz Serrinha.

Rodrigo da Nóbrega Pinto Pizarro

Na altura, já lá vão 40 anos, fui transferido disciplinarmente do CIOE (Lamego) para o RI10 (Companhia Operacional do Regimento Infantaria 10, Aveiro), bem como a quase totalidade dos capitães daquela Unidade o foram para outras espalhadas pelo País, em virtude de uma insubordinação em 15 de Março de 74, na sequência das demissões dos Generais Costa Gomes e Spínola.

Na madrugada de 23 para 24 de Abril, recebi das mãos do então capitão Sousa e Castro a Ordem de Operações do MFA para as acções a cumprir pela Companhia Operacional do RI10.

Contactados os oficiais milicianos aderentes ao Movimento e alertado o comandante da Companhia (Alf. Cunha) que se encontrava em exercícios no campo em Aguada, arredores de Aveiro, reuni com outros capitães em casa do capitão Cal, oficial a prestar serviço em Águeda, aguardando as senhas para preparação e início das operações. Após a audição da canção Grândola, pelas 00h20, conjuntamente com o capitão Lucena Coutinho e em viatura particular, marchei ao encontro da Companhia para assumir o seu comando.

Depois de formar o pessoal, foram distribuídas as 2000 munições reais (dotação de segurança para sub-unidades em exercícios) e iniciou-se, por volta das 01h00, o movimento para a Figueira da Foz onde, segundo a ordem de operações, teríamos que estar até às 03h00 para nos reunirmos com as restantes unidades que constituíam o Agrupamento November e que eram companhias do RI14 (Viseu), RAP3 e CICA2 (Figueira da Foz).

Chegamos àquela cidade pelas 02h40 e encontrámos os portões do RAP3 fechados, com pouca ou quase nenhuma movimentação no seu interior.

Face a tal situação, deslocamo-nos ao CICA2 onde o capitão Sousa Ferreira (outro dos oficiais transferidos do CIOE em 15 de Março) nos informou estar a ser preparada a companhia daquela unidade sob o comando do capitão Rocha Santos, e que o capitão Diniz de Almeida estaria a deter o comandante do RAP3.

Dado que a concentração era nesta Unidade, aí entrámos por volta das 03h15, tendo assistido à grande azáfama na preparação dos militares, na grande maioria recrutas ainda em instrução.

Aproveitei esse momento para formar a companhia e comunicar aos militares a missão que nos tinha sido atribuída, das suas razões. Obtive de todos eles adesão incondicional.

Como tinha poucas munições e não se encontrava a chave do Paiol, uma das minhas viaturas arrombou a porta do mesmo, o que permitiu municiar as minhas forças e as do RAP3, incluindo as necessárias para as 6 peças de artilharia desta unidade.

Não havendo qualquer contacto com os militares do RI14, aguardámos até às 05h00 pela sua chegada e, como ela não se verificasse, foi decidido avançar sob o comando interino do capitão Lucena Coutinho, uma vez que o comandante do Agrupamento — capitão Gertrudes da Silva  vinha juntamente com as forças do RI14.

Contornámos Leiria, sede do RI7, Unidade não afecta ao Movimento, e parámos junto ao RI5 (Caldas da Rainha) onde dialogámos com oficiais que tinham substituído os que foram detidos no golpe falhado de 16 de Março, os quais nos garantiram a sua neutralidade.

Para dar cumprimento ao principal objectivo — ocupação do Forte-Prisão de Peniche —, a coluna marchou para aquela localidade, tendo a minha sub-unidade sido detida quando faltavam cerca de 9 Km porque uma viatura do CICA2 teve uma avaria mecânica, ocupando a faixa de rodagem e obrigando à sua remoção.

Chegados a Peniche ao início da manhã, deslocámo-nos de imediato para o Forte na convicção de que o mesmo já teria sido tomado pelas forças do RAP3 e CICA2, mas constatámos com surpresa que elas aí não se encontravam. Apercebi-me de que elementos armados da GNR continuavam a garantir a segurança, decorrendo ainda na praça fronteira ao Forte uma Feira.

Coloquei as minhas forças em posição de combate em todos os arruamentos que permitiam o acesso à praça, dando instruções ao meu adjunto (Alf. Cunha) e ao Aspirante do RAP3, responsável pelas 4 bocas de fogo de artilharia que o capitão Dinis de Almeida colocou sob o meu comando — eram 6, mas 2 ficaram pelo caminho entre Leiria e Caldas da Rainha, em virtude de um acidente que envolveu as viaturas que as rebocavam.

Face ao aparato militar, alguns feirantes vieram ao nosso encontro perguntando se podiam ali continuar e se correriam riscos, tendo-lhes eu dito para evacuarem a praça em 3 a 5 minutos.

Para inveja de muitas forças militares, revelaram extraordinário profissionalismo e rapidez na desmontagem das bancas e tendas, evacuando a praça em breves minutos, de tal forma que, não fora o abandono de alguns plásticos e caixas vazias, ninguém diria estar ali a decorrer uma feira.

Montado o dispositivo de cerco com indicação de que as bocas de fogo fossem apontadas ao Forte em tiro directo, dirigi-me ao portão principal onde já se encontrava o seu responsável. Este, manifestando “surpresa e espanto“, perguntou pelos motivos do posicionamento da força militar, e eu respondi-lhe que estava a cumprir uma missão do MFA, que desde as primeiras horas da manhâ tinha desencadeado uma operação militar para derrube do Regime, e exigi-lhe a rendição e entrega incondicional do Forte.

Alegando não ter recebido qualquer ordem superior nesse sentido e não ter nenhum contacto com Lisboa, pediu algum tempo mais para entregar o Forte, o que lhe concedi, dado termos instruções para evitar, a todo o custo, qualquer derramamento de sangue.

Entretanto, chegou a Peniche a Companhia do RI14, tendo o comandante do Agrupamento convocado todos os capitães para uma reunião. Nesta expus o ponto de situação junto ao Forte e obtive, da sua parte, concordância com a minha decisão.

Nessa reunião foi atribuída, a seu pedido, ao CICA2 a ocupação do Forte, uma vez que os seus militares eram recrutas com pouca ou quase nenhuma experiência e teriam dificuldades acrescidas na continuação da missão em Lisboa.

Assim sendo, a minha companhia integrou-se no Agrupamento e seguiu para Lisboa onde, conjuntamente com a do RI14, ficou de intervenção no Quartel General do Governo Militar até ao dia 29 de Abril, face ao empenhamento de algumas unidades nos objectivos a cumprir na capital e à não adesão de outras ao Movimento, entre as quais o RAL1 (RALIS).

Nesse período, a nossa principal intervenção teve lugar no Jornal Época para permitir a evacuação e segurança dos jornalistas e funcionários que se encontravam cercados e ameaçados por populares.

Coronel, Infantaria (Reformado)

Maria Virgínia Machado

No dia 25 de Abril de 1974 tinha 23 anos e morava na Rua do Alecrim, no último andar do prédio a seguir ao Palácio Quintela, cujas traseiras dão para o jardim do Palácio e Rua António Maria Cardoso, avistando parte do cinema S. Luís.

Não tinha o hábito de ouvir o rádio de manhã e não me apercebendo de nada, desci para a R. da Prata onde trabalhava na antiga Companhia de Seguros Ultramarina. Durante o trajecto, achei alguns movimentos estranhos, as pessoas pareciam-me agitadas, diferentes, mas mesmo assim continuei e entrei no local de trabalho.

Aí falava-se num golpe de Estado, das janelas viam-se tanques no Terreiro do Paço. Comecei a achar a situação complicada. Lembrava-me do meu tio ter sido perseguido pela PIDE. Interrogava-me a mim própria: E se agora desatam todos aos tiros e temos aqui um banho de sangue? Deve ser inevitável, vão começar a lutar uns contra os outros. Estarão todos contra o Governo? Alguns começaram a dizer que tinham medo e iam para casa, outros que iam ver o que se passava.

Os tanques começaram a subir a Rua da Prata, os soldados e o povo que já se juntava a eles, ao passar em frente da Companhia, gritaram: Fascistas, fascistas, fascistas! Uma Colega grávida começou a gritar, branca como a cal da parede. Na minha aparentemente calma gritei com ela que quase desmaiava: ou te calas ou dou-te um par de estalos… olha a criança, como é que eu te tiro daqui se te dá alguma coisa? Consegui acalmá-la e entretanto chegou o marido que a levou. O meu veio um pouco depois. A Administração mandou fechar a Companhia e irem todos para casa.

Andei por becos e travessas onde havia pouca gente, mas lembro-me bem de ver o alcatrão da Rua da Prata todo rebentado pelas lagartas dos tanques.

Chegada a casa já estávamos todos e devorávamos tudo quanto se passava na televisão. Conforme os pontos-chave iam sendo ocupados, parecia uma vitória. Começaram a aparecer os cravos e o meu pai sempre tão calado parecia satisfeito. Eu pensava: se isto resultar, talvez o meu irmão não vá para a guerra, já me bastava terem ido os amigos.

Durante a tarde desse dia, por volta das 16 horas, ouviram-se tiros e o meu marido lembra-se como se fosse hoje de um homem que descia a Rua ter sido atingido mortalmente. Antigamente havia uns terrenos onde hoje existem os Terraços de Bragança, e o tiro veio da PIDE. Esse facto deu conta do meu sistema intestinal e corria para a casa de banho que ficava nas traseiras e cujas portadas foram fechadas por indicação do meu pai, com ordens de ninguém acender a luz.

Pela Rua do Alecrim começou a subir uma multidão que gritava: morte aos PIDES! Recomeçaram os tiros e houve mais mortes. Isso oiço ainda na minha cabeça. Mal dormimos com receio de que soldados e PIDES andassem em cima dos telhados, porque o desespero já era grande.

O dia seguinte revelou-se uma autêntica surpresa. Chegados à janela, havia tanques no Camões, tanques ao fundo da rua, morteiros montados em frente ao Palácio no Largo Barão de Quintela.

Nunca tinha visto morteiros e perguntei ao meu marido o que era aquilo. A explicação deixou-me apreensiva. Ninguém passava na Rua e os soldados não deixavam ninguém estar nas janelas. Comecei a pensar que os morteiros podiam não ser certeiros e fazerem um buraco no nosso telhado. A minha mãe achou que eu tinha razão e o meu pai começou a ficar inquieto, o meu irmão com 15 anos estava menos consciente do perigo.

O meu marido decidiu ir falar com os soldados para saber o que fazer. Considerando que estávamos no último andar e os PIDES ainda não se tinham rendido, poderia haver necessidade de dispararem. Fizeram uma reunião e decidiram que seríamos retirados de casa com a sua protecção. Assim foi feito, em fila indiana, um soldado para cada um, encostados aos prédios e passando para o Largo Barão de Quintela onde o meu pai tinha o carro estacionado.

Assim saímos dali, mas o curioso é que no resto da cidade a vida parecia correr normalmente, com cravos vermelhos e risos abertos. Fui a única pessoa que não trabalhou nesse dia, mas viu a sua falta justificada pelos patrões apelidados de fascistas.

Chico da Emilinha

O que viste no 25 de Abril?

Nada, nada de nada do que aqui se passava.

No dia seguinte, pelos céus de Cabinda, passavam vários quando passa, já passou — nome dado pelos pretos aos aviões FIAT, uma vez que quando se ouvia o ruído, já o bicho ia muito lá prá frente.

Isso para a malta foi estranho, devido ao elevado e desusado número de FIAT’s e às suas várias passagens durante todo o dia. Para nós, significava que havia merda no mato, levando-nos a pensar nos desgraçados que por lá estavam, mas mais estranho ia ficando, uma vez que não éramos chamados ao hospital onde os héli’s depositavam os soldados que eram evacuados. A PM fazia uma espécie de guarda entre o sítio onde pousavam os passarocos e o corredor da sala de operações  uma salita com 10 m2, uma mesa de chapa com dois braços perto da cabeceira, onde eram amarrados os que podiam ser operados, corte de pernas e outras coisas assim; a porta da sala era de vai-e-vem, tipo faroeste, e no chão do corredor ficavam os desgraçados, rasgados, ensanguentados, ou não dando acordo de si; os médicos de serviço encarregavam-se de verificar se era possível serem ali tratados ou se tinham de ser evacuados para Luanda; não raro, um ou outro médico, lá dava ordem de evacuação para a cidade grande, mas diziam-nos: este não chega lá… Por ordem de um médico, tive a infeliz oportunidade de ter de segurar, com tanta força que ia virando a “mesa de operações”, num preto a quem cortaram a perna abaixo do joelho; estava a acabar a anestesia e uma preta varria a salita, mas o médico (Câmara Pires) não saiu da beira do homem enquanto ele não lhe respondeu a determinadas questões. No dia seguinte, a convite do médico, visitei o gajo, dei-lhe uns cigarros… só lhe doía o dedo grande do pé que já não tinha.

Como PM, fazia alguns serviços no Comando de Sector, frequentado por gente da mais graúda. Começou o diz-que-diz, mas demorou alguns dias a saber-se mais ou menos o que havia acontecido. Os furrieis iam-se abrindo com a malta, os aerogramas não chegavam… demorou algum tempo a perceber.

Não muito tempo depois, o MPLA entrou em Cabinda com as nossas tropas. Do lado dos Honimogues, o que ficava virado para o Comando de Sector, vinham as nossas tropas; do outro, vinham os homens do MPLA. Só demos por ela quando acabou de passar a coluna… Os MPLA’s estavam de joelho no chão e com as armas apontadas ao edifício.

Alguns Furrieis e Oficiais das nossas tropas que vinham na coluna, tinham saltado mais à frente e chegaram-se a nós. Foram eles que entraram no Comando de Sector e deram voz de prisão a todos os Oficiais que viriam a ser enviados para a cidade grande, Luanda. Havia um Major da PSICO (que não lembro o nome, nem quero), mas que tinha a mania de dizer quando lhe apresentavam algum caso: Tem problemas ? APONTE! E assisti a um Furriel dar-lhe voz de prisão; o homem fez peito e levou um estalo de mão aberta; espalhou-se pela escadaria onde eu estava, e ficou meio parvo; foi a minha oportunidade: Tem problemas, meu Major? APONTE!!

As notícias que chegavam por aerograma tornavam a coisa para nós mais confusa e incompreensível, dada a situação em que nos encontrávamos: obedecer a ordens? mandar foder aquilo? aturar os desmandos dos pretos e dos brancos…

Mais tarde, no Chiluango (cinema ao ar livre), passaram vários cantores… aprende a nadar, companheiro…… maré alta, maré alta

Com as notícias que chegavam por aerograma, a coisa era para nós confusa, a alegria era grande, mas o que queríamos era vir embora

Foram momentos complicados assistir (de serviço), pela passagem de Lúcio Lara e, depois, Agostinho Neto, por Cabinda. Mas aí começámos todos a acreditar em Liberdade, mas com uma raiva muito grande: os pretos mandavam-nos para a nossa terra, raspando as catanas no chão.

Em rondas mistas com elementos dos Movimentos de Libertação, ao ter mandado foder uns pretos que queriam colar cartazes no Comando de Sector e só falavam francês — eu não dormia já nessa altura —, mandei um pontapé no balde da cola e ordenei que desandassem dali; a G3 teve mais força, mas foi uma merda com outros pretos que falavam a minha língua; vá que apareceu o mibindi (amigo, em fiote), que vim a saber que era MPLA, e convenceu os outros que eu era o gajo que lhe dizia muitas vezes: ainda hei-de ver a vossa terra livre!

Regressámos a Luanda depois de termos deposto as armas em Cabinda. Queríamos desandar dali. Na cidade grande foram atrocidades sobre atrocidades, uma merda das piores.

Regressei em 15 de Março de 1975. Só aí vi o que tinha sido e era o 25 de Abril e o 1º de Maio.

O meu não foi nada bom por aquelas terras… Foi mesmo doloroso, com uma mistura de alegria Complicado. Mas cá estou a pugnar por ele, sempre! 

Vicente Corvo

Sou Alentejano, natural de uma aldeia do interior, Cabeça-Gorda, de que muito me orgulho. Após o meu regresso da guerra colonial de Angola 1961/1964, fixei-me em Sintra, na Portela de Sintra, que fica perto da estação de comboios.

No dia 25 de Abril, eu tinha 36 anos, casado, dois filhos, um rapaz de 5 anos e uma rapariga de 2 anos. Trabalhava em Lisboa na firma James Rawes & Cª., Ldª., empresa de Navegação, Seguros e  Turismo, na Rua Bernardino Costa, 47, e com entrada para os serviços administrativos também, pela Travessa do Corpo Santo, nº.9.

Ora bem, convém abrir aqui um parênteses e dizer que eu não ouvia as notícias de manhã. Como trabalhava e estudava à noite, deitava-me tarde e, de manhã, era sempre a correr que apanhava o comboio. Portanto, eu não tinha conhecimento do que se estava a passar. Mas minha mulher, que andava a tirar a carta de condução e tinha uma lição às 8 horas, ouviu na rádio as notícias que pediam para as pessoas ficar em casa e não ir trabalhar. Segundo ela me contou posteriormente, ainda pensou em vir a casa alertar-me, mas ao mesmo tempo resolveu não vir porque sabia que se me viesse avisar, a resposta pela certa era: agora é que eu vou mesmo, o mais depressa que puder. De facto, não se enganava.

Não sabendo de nada, fui apanhar o comboio e a carruagem habituais. Qual não foi o meu espanto quando entrei na carruagem e não vi os companheiros habituais, a não ser um amigo de S. Pedro de Sintra. Este, quando viu o revisor, perguntou se os comboios chegavam ao Rossio, ao que o dito revisor respondeu que, por enquanto, ainda chegam, mas não sabia por quanto tempo. Admirado, perguntei porquê, o que se passava, ao que esse amigo me disse: então você não sabe?! há uma revolução em Lisboa e eu vou já sair na próxima estação do Algueirão; ao que eu respondi a tal resposta que a minha mulher sabia que eu daria: agora é que eu quero mesmo ir para Lisboa… não saio aqui!

Chegado a Lisboa, por uma questão de instinto, pensei que indo pela Baixa, teria mais hipóteses de recolher alguma informação. E assim foi.

Como eu tinha estado na guerra de Angola como 2º. Sargento Miliciano Atirador de Out./1961 a Janeiro de 1964, eu movia-me à vontade no meio das fardas e das armas, sem qualquer receio.

Assim, passando pela Praça do Rossio, onde já se notava algo de diferente do habitual, entro na Rua do Ouro e aí já havia tropa ocupando essa rua toda. Eu aproximei-me e tentei colher alguma informação junto das tropas, alguns soldados, cabos e furriéis.

Já tinha saído o livro do Spínola, Portugal e o Futuro. Esse livro trouxe-nos, embora falsamente, alguma esperança de mudança, como também já tinha sido o 16 de Março das Caldas. Por outro lado, eu estudava à noite na Escola do Cacém, uma escola bastante politizada na altura, frequentava os Cursos Complementares do Comércio para poder ingressar na Faculdade de Economia, e a minha turma era uma turma de homens já adultos, muitos já com trinta e tal anos, na sua maioria de esquerda, senão todos. Era pessoal que já tinha uns certos contactos e alguma da informação que se falava em grupos restritos.

Todas estes acontecimentos, criavam em nós uma expectativa de que algo iria acontecer dentro de pouco tempo, pois era notório que o regime estava a cair de podre.

Então quando me aproximei das tropas, perguntava se eram tropas do Spínola ou das Caldas, ou se eram leais ao regime. Alguns não falavam, diziam que tinham ordens para não falar, mas um ou outro sempre me disseram que se tratava de um golpe militar contra o regime.

Àquela hora já havia muito povo nas ruas, ao longo dos passeios: não tinham obedecido às ordens do MFA para ficar em casa, tal como eu.

Passei a Rua do Ouro, Praça do Município, Rua do Arsenal — ainda não se tinha dado o confronto entre as tropas do heróico Capitão Salgueiro Maia contra as tropas leais ao regime.

Cheguei ao escritório na Travessa do Corpo Santo e já dispunha de alguma informação fidedigna. Falei com os patrões que acreditaram, mas alguns colegas ficaram na dúvida. Aqueles que nós sabíamos ser apoiantes do regime, responderam-me que não era possível, que eram boatos. Tudo bem, os patrões deram ordens para o pessoal ir para casa e, como eu tinha a chave do escritório, disseram-me: você, Corvo, feche as portas e vá-se embora também.

Quando o fiz, seria já perto das 11h, 11h30, e lembro-me que assim que fechei a porta e ponho um pé na rua, já o quarteirão estava cercado pelas tropas. Imediatamente ouviu-se uma rajada de espingarda metralhadora. Como o meu instinto de defesa de quando andei na guerra ainda estava cá, reagi de pronto, baixando-me e colando-me à parede para ser um alvo o mais reduzido possível. Pergunto ao Furriel que ali estava, por onde podia ir, e ele respondeu-me que se era para ir para a estação do Rossio, que subisse a Rua do Alecrim, o que fiz de facto.

Fui andando até ao Rossio como um autómato, o meu pensamento dividido entre a família e a a oportunidade única na vida de viver uma revolução e momentos inesquecíveis da libertação dum povo oprimido por quase meio século de ditadura fascista!

Chegado ao Rossio, já perto da porta da carruagem, vejo uma senhora de meia-idade minha conhecida, era a sogra de um dos meus irmãos que morava na Damaia. Ela estava muito nervosa e ajudei-a a subir para a carruagem. Aconselhei-a a ir já embora, ao que ela me perguntou: e, então, o Vicente não vem? Eu não respondi de imediato, o meu pensamento ainda estava dividido, mas naquele momento pensei que se me acontecer alguma coisa, a minha mulher e os meus filhos que me perdoem, mas eu não vou perder esta oportunidade e respondi à senhora: o, não vou. Fico em Lisboa e vou para a Baixa… Quero viver a Revolução!

E assim dei por mim nos passeios da Rua da Conceição, onde passam os eléctricos, perto do meio-dia.

A esta hora já havia milhares e milhares de pessoas nas ruas em desobediência às ordens do MFA. Reparei que havia soldados com as suas armas colocados estrategicamente nos varandins dos telhados dos edifícios, e as ruas estavam ocupadas por tropas afectas à Revolução. De vez em quando, havia informações dadas por algum oficial que tinha um megafone e ia fazendo um ponto da situação que se vivia na Rua do Arsenal, do confronto entre tropas do Heróico Capitão Salgueiro Maia e as ainda leais ao regime. E o povo já gritava palavras de ordem a incentivar as tropas!

Quando, finalmente, perto das 13 horas, há a informação, via megafone, de que as tropas afectas ao regime se tinham rendido e, aí, foi uma explosão total com os gritos de VITÓRIA, VITÓRIA, VIVA A LIBERDADE!

Seguidamente, o povo, aos milhares seguimos os carros de combate, aqueles monstros PANHARDS que tinham ajudado à vitória das tropas e do povo, e subimos a rua Augusta até ao Rossio.

Chegados ao Rossio, ouvi que as tropas iriam dirigir-se para ocupar as instalações de organizações para-fascistas, a Legião e a Mocidade Portuguesa, e outros iriam para Caxias para libertação dos presos políticos. Eu já não segui para aí e fiquei no Rossio a ouvir muitos discursos inflamados de rapaziada nova que me pareceu estudantil (eram activistas do MRPP). Passado algum tempo, ouvi alguém desse grupo gritar: agora, vamos para a António Maria Cardoso! Eu pensei, espera lá, isto são as instalações da PIDE! Não vou para aí, novamente a minha experiência da guerra e o meu instinto funcionou bem, e pensei, eles devem estar entrincheirados e armados, à espera que as tropas lhes vão ocupar as instalações, e eles não se vão render sem dar luta, e estes gajos vão dar o peito às balas, isto pode dar merda… e não fui.

Como já eram talvez umas 15 horas, deu-me fome e fui procurar alguma tasca aberta para comer uma sandes, dirigindo-me à Rua 1º de Dezembro. Assim que dobro a esquina, deparo-me com uma secção de GNR’s perfilados em formação de combate com as armas em riste, ainda fiéis ao regime. Imediatamente faço meia volta e dirigi-me aos Restauradores, mas nada, estava tudo fechado.

Voltei ao Rossio e lembrei-me de subir as escadinhas do Rossio. A Calçada do Carmo já estava apinhada de povo, por todo o lado, até em cima das árvores, pois era o último reduto do regime que ainda resistia. Como os GNR’s não se rendiam, então começámos a ouvir apelos por megafone para o povo abandonar o local, porque as tropas tinham que bombardear o quartel. Este aviso foi feito várias vezes sem resultado, ninguém arredava pé, até que se ouviu uma ordem para abandonarmos imediatamente o local, porque as tropas iam de imediato atacar o quartel. Aí o povo acreditou e tocou em debandada desordenada por todos os lados, um deles foi a estação do Rossio, com os comboios da linha de Sintra a arrancarem de imediato! Ainda ouvi as tropas a dispararem alguns tiros contra o quartel: e foi quando o Capitão Salgueiro Maia entrou para as negociações com o Marcelo Caetano para queda do governo, do regime que acabava de cair, e a consequente passagem do poder para o MFA.

Voltei para casa nesses comboios, seriam mais ou menos 18 horas. Pus-me a ouvir as notícias da rádio e a ver a televisão e foi quando ouvi a notícia das mortes de 3 ou 4 jovens na António Maria Cardoso. Afinal, eu tinha razão e lamentei a morte tão estúpida desses jovens.

Os dias seguintes foi uma vida frenética, mal trabalhávamos, a hora de almoço era vivida a acompanhar os acontecimentos da Revolução, na zona da Baixa e do Cais do Sodré. Num desses dias, à hora do almoço assisti ao assalto às instalações da Censura que ficava perto da Misericórdia. Eram móveis, eram pastas, toda a papelada deitada para a rua através das janelas do 1º. Andar. Eu ainda agarrei um pedaço de um Jornal com uma notícia censurada sobre a falta de gasóleo em Porto Amélia, Moçambique.

Nas escolas vivia-se um processo revolucionário e de ajuste de contas com quem tinha sido colaboracionista com a PIDE. Na escola que eu frequentava, no Cacém, havia dias a fio Assembleias de professores e RGA’s. Houve processos de saneamento, alguns justos, mas também alguns injustos. Nas aulas, uma grande parte do tempo, em qualquer disciplina, nós, os alunos impúnhamos que, antes de dar qualquer matéria, tínhamos que discutir na aula os acontecimentos desse dia e não cedíamos: os professores tinham que alinhar neste tipo de discussão, exigíamos a sua participação e a sua opinião — excessos do PREC, talvez, mas mesmo assim considero que o povo português se portou muito calmamente.

Estive em muitas Manif’s, quer do Partido Comunista, quer da UDP. Nunca estive ligado a qualquer partido, mas sempre fui e sou um homem  de convicções de esquerda. Penso que já nasci assim, são genes que passaram dos meus antepassados, o meu avô paterno e o meu pai, naturais de Beja, durante a 1ª República pertenciam ao partido Republicano.

Aos 16/17 anos vivi em Beja os acontecimentos do funeral de Catarina Eufémia, que me marcou muito nessa época.

Tive o prazer de estar na 1ª. Grande manifestação do povo em LIBERDADE, o primeiro 1º de Maio  de 1974, que terminou no estádio da FNAT. Nessa manifestação, foi uma verdadeira explosão de alegria e de comunhão entre o povo, por termos conseguido quebrar as amarras de quase meio século de fascismo. Recordo o discurso de Mário Soares e de Álvaro Cunhal, o abraço entre ambos e o discurso de dirigentes sindicalistas da época.

Recordo com saudade a alegria que transparecia nos rostos deste povo anónimo! Lembro-me que nos comboios, as carruagens apinhadas, o pessoal, mesmo sem se conhecer, falava dos seus problemas nos locais de trabalho e todos nós discutíamos, no bom sentido do termo, esses problemas: ouviam-se conselhos, emitiam-se opiniões, todo o mundo falava sem medo de dar a sua opinião, de expor as suas ideias.

Era o nosso renascimento como Povo que sentia que tinha conquistado a sua dignidade como seres humanos livres, de poder falar sem medo, de expor os seus ideais, do tipo de sociedade que queríamos, uma sociedade Justa, Fraterna, Solidária, com direitos e deveres iguais para todos perante a Lei.

Queríamos acabar com a guerra injusta nas colónias, queríamos Paz, Pão, Habitação, Educação, Saúde, enfim, melhores condições de vida para todo o Povo, mas que, infelizmente, passados 40 anos, está tudo a ser roubado por estes fulanos, os filhos daqueles que nunca aceitaram a audácia que os Capitães de Abril e o Povo tiveram em fazer o 25 de Abril de 1974.

Viva o 25 de Abril, sempre! Fascismo nunca mais!

Citando o saudoso poeta Zé Carlos Ary dos Santos: “Agora, ninguém mais cerra as portas que Abril abriu!”

Vicente José Cançado Corvo, 76 anos, Técnico Oficial de Contas

Fernando Monteiro

Eram sete e tal da manhã e dormia. Na véspera, dia 24 de Abril de 1974, tinha estado no Goa com o Benite, o Virgílio Martinho e mais malta do Grupo de Teatro de Campolide, a beber umas cervejas, muitas, e a fumar uns cigarros, muitos, quando sou acordado com safanões e gritos pela D. Ester, minha mãe, com um ar aflito a dizer: Levanta-te, filho! Tens que ir prá tropa que há uma revolução!… Ó mãe, cale-se e deixe-me dormir É verdade, filho, estão a dizer na telefonia Liguei o rádio e só ouvia marchas militares de permeio, coisa rara, com músicas do Zeca do Fausto do Adriano e do Fanhais Entretanto toca o telefone, do outro lado do linha era um colega e amigo dos Serviços Cartográficos: Eh, pá, estão a transmitir na rádio que está em curso uma operação militar e que todos os militares se devem dirigir para as suas unidades, qué ca gente faz? Eh, pá, se estão a dizer isso, a gente vai! E eu que era militar mas pouco, afastei os lençóis, pus um pé fora do sofá-cama onde dormia — vivíamos numa vila operária e eu não tinha quarto , passei as mãos pelos olhos para afastar as ramelas, fui lavar a cara — não tínhamos casa de banho , vesti-me e fui prá tropa.

Cheguei à porta da tropa e estava fechada, isto já deviam de ser prái umas nove e tal da manhã, toquei à campainha e vieram abrir-me a porta: Entra rápido! E eu entrei.
Lá dentro era um alvoroço de oficiais, uns fardados, outros à civil, cirandavam que nem baratas tontas de um lado para o outro. Devo dizer-vos que os Serviços Cartográficos do Exército era assim a modos que uma estância balnear do exército, com a oficialagem quase toda afecta aos mandantes deste desgraçado país. Lembro-me particularmente que o Ferro e o Gabriel Teixeira, dois majores sempre de gravata preta — devia ser para impressionar o patrão Marcelo —, estavam borradinhos de medo e, às tantas, fecharam-se no gabinete de um deles a fazer não sei o quê, mas a combinarem aderir ao Movimento não era de certeza, deviam era estar a combinar uma estratégia de fuga, mas bem lixados estavam que eu e o resto da malta já tínhamos combinado não deixar sair ninguém, até tínhamos ido buscar as FBP, que eram três, e passeávamo-nos com elas ao ombro, todos importantes.

Entretanto chegaram as treze horas, hora de abrir a porta. O daquela da tropa veio dizer que não se abria a porta, mas alguém devia estar do lado de fora armado. Eu, claro, ofereci-me logo, queria apanhar ares. Peguei numa FBP  e postei-me do lado de fora da porta, tive que me abrigar ligeiramente num umbral porque caia uma morrinha. A rua, ao contrário do que o Movimento pedia, estava cheia de gente passante com sorrisos no rosto: tinha soado a hora da liberdade — recebi montes de beijos e abraços, a tropa ainda na véspera tão mal vista era agora herói da liberdade, as pessoas traziam cravos vermelhos e também eu tive direito a um. Eu estava feliz, o povo estava feliz. Soube que no Carmo o Salgueiro Maia tinha cercado o Marcelo e mais alguns da corja dominante, mas que a malfadada pide na António Maria Cardoso, mesmo nesse dia de felicidade, havia morto duas pessoas que, soltas as gargantas das amarras da opressão, gritavam vivas à liberdade, abaixo a ditadura. A hora da liberdade não ia soar, já tinha soado, era um facto que íamos ser povo, que íamos ser livres, acabava-se de vez com a guerra colonial, a pide, a legião, a censura e todas essas merdas em que se alicerçava o regime caduco de velho e de velhos.

“O povo saiu à rua num dia assim” e fez a festa. Foi um dia feliz muito feliz, posso dizer que, com o 1º de Maio de 74 e o dia do nascimento do meu filho, esses foram os dias mais felizes da minha vida. Vivemos em liberdade e democracia durante alguns anos e agora um bando de coelhos cavacos marilus e portas querem tirar-nos tudo Vejo a minha Lisboa pejada de pedintes e sem-abrigos, vejo de novo crianças de pé descalço, vejo a fome e a miséria que nos assolam de novo lentamente vai sendo implantado o tempo de 24 de Abril, mas este povo, que tão letárgico está, um dia há-de acordar e corrê-los a pontapé! Não quero mais ver crianças descalças e gente de lábios cosidos, o medo teve o seu tempo negro e afastámo-lo, as trombetas soam nos meus ouvidos e dizem-me que é necessário um novo 25 de Abril, mesmo que ele calhe a 31 de Janeiro: acordai, povo, revoltem-se, portugueses, porque queremos de novo “a paz, o pão, habitação, saúde”, queremos de novo agarrar nas nossas mãos e fazer futuro, o futuro é nosso não é de meia dúzia de tipos de fato azul e gravata, nem dos patrões estrangeiros que nos dizem que devemos empobrecer… o quê mais ainda? Eles julgam que mandam, mas Portugal há-de ser uma Fénix renascida que não se deixa endrominar com tretas e falinhas mansas Quero sair para a rua e dizer que tenho um país, não um colonato Não somos cobaias do fmi ou bce! Somos um povo como muitos séculos de história: somos um povo que quer ser livre e feliz, porra!

62 anos, Desenhador

Jorge Cancela

Vivia perto do Jornal de Notícias, no Porto. Tinha 11 anos. 

De manhã, 9h, na Escola Augusto Gil, na R. St.ª Catarina, foi-nos dito pelo director que devíamos voltar a casa, pois estava a começar uma revolução. Fiquei calmo. A maioria começou a gritar.

Em 5 minutos a pé, cheguei a casa. Só pela rua calma.

Em casa foram todos chegando e logo meus pais decidiram comprar um TV para ouvir as noticias. Lembro bem a minha mãe mostrar receio de ser uma revolta da extrema-direita. Mas as primeiras noticias não o confirmaram.

Lembro bem os comunicados do Fernando Balsinha e do Fialho Gouveia.  

Não senti medo. Não gostava da guerra colonial, da pobreza que via nas escolas, nas ruas, nos miúdos descalços, na fome que sabíamos que passavam. Não gostava dos senhores cinzentos que me pareciam maus e eram governantes. Hoje sinto mais emoção. Nesse dia foi uma mistura de novidade, uma sofreguidão de novas emoções.

51 anos, médico, hematologia clínica

Pedro Concha Nunes de Azevedo Peres

Do dia 25 de Abril de 1974, uma quinta-feira, recordo-me do nascer do dia nublado, de ir para o trabalho e, ao iniciar a descida da álea superior do Parque Eduardo VII, vindo de Campo de Ourique em direcção a S. Sebastião da Pedreira (curiosamente este troço de via pública passou a ser designado por Alameda Cardeal Cerejeira, por edital da CM de Lisboa, datado de 14 de Abril de 1982, então presidida pelo Eng.º Kruz Abecassis, do CDS, em representação da coligação PSD-CDS), de me deparar, subitamente, com uma autometralhadora estacionada no cruzamento com a Avenida António Augusto de Aguiar.

Travo o carro, uma Dyane branca, decidido a dar meia-volta para escapar a possíveis complicações e regressar a casa. Naquele tempo éramos quase todos suspeitos de sermos perigosos subversivos até prova em contrário. E até que aquela prova se produzisse, era uso “porrada de criar bicho”.

Regressado a penates, abri o rádio, a televisão, escutando os comunicados do Posto de Comando do MFA, enquanto ia ligando para este e para aquele a ver se entendia o que se passava.

Como estava fundeada uma esquadra da NATO no Tejo com saída prevista para essa manhã, resolvi ir com um amigo meu até Belém para confirmar a sua saída. Lá os vimos a desfilar e voltámos para almoçar em casa dele e continuar a tentar perceber o que de facto se estava a passar. Mas a memória do Chile assombrava-me, com os seus milhares de mortos e de desaparecidos e de dezenas de milhares de encarcerados. O 11 de Setembro de 1973 da besta sanguinária de Pinochet tivera o beneplácito explícito dos EUA e implícito da maioria das “democracias ocidentais” representadas na NATO.

Assim a saída da esquadra, cumprindo o calendário, nada queria dizer: o que aconteceu no Chile poderia facilmente repetir-se em Portugal. Por outro lado, a proximidade do regime de Franco, outro bárbaro sanguinário, que continuava a torturar e a assassinar pelo garrote ou pelo fuzilamento, também era motivo para preocupação.

Acresce que o meu conhecimento dos quadros das nossas Forças Armadas, adquirido durante 4 anos de SMO, dois em Portugal Continental e outros dois em Angola, não era de molde a dar-lhes grandes créditos. A agravar a minha leitura da situação, entre eles pontuavam figuras que sempre estiveram coniventes com o regime autoritário e repressivo de Salazar e Marcelo.

A primeira página do República entreabria a porta à esperança, mas a dúvida subsistia: Golpe militar para derrubar o “tíbio” Marcelo, ou era algo de diferente, que abrisse caminho à instauração das liberdades, direitos e garantias de um Estado democrático de direito?

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À tarde passei pelo Largo do Carmo. Já estava pejado de gente. As pessoas irmanavam-se, entoando palavras de ordem, e fundiam-se com o aço dos carros de combate. Era como se os quisessem proteger com a sua própria carne, como se o aço lhes fortalecesse a determinação.

É tempo de honrar este Povo anónimo que saiu à rua, cidadãos e militares — praças, cabos, furriéis e sargentos — e que, por tantos terem sido, tão pouco são recordados.

Parafraseando Bertolt Brecht, nas “Perguntas de um operário que lê”: Os capitães  de Abril conquistaram a Liberdade, sozinhos?

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No Largo do Carmo o tempo passava. Marcelo e seus acólitos cercados pelos populares e pelos militares revoltosos tardavam em render-se.

Impaciente com o desenlace que tardava, resolvi descer, já de carro, pelo Camões em direcção ao Chiado.

Estou no Camões, passava das quatro da tarde, e ouço tiros. De repente desponta numa esquina meia dúzia de pessoas a fugirem transportando uma rapariga ferida.

Metemo-la no meu carro e lá a transportei, no banco de trás, sozinho, em corrida desabrida até às Urgências do Hospital de S. José. Desembarquei a minha passageira e eis que logo chega um polícia que me disse para esperar, que tinha de ficar com a minha identificação.

Enquanto volta costas e torna a entrar nas Urgências, meto-me no carro que estava ligado e desapareço.

Nunca soube quem ajudei naquele dia, mas estou certo que sobreviveu apesar do sangue que perdeu.

68 anos, Gestor, reformado

Renato F. G. Marques

Eu estava em Luanda, Angola, há 22 dias, por motivos profissionais.

No dia 24 de Abril de 1974, soube a meio da manhã que tinha ocorrido uma revolução em Lisboa e, um pouco mais tarde, correu o boato de que tinha sido abortada mas, posteriormente, acabou por ser confirmada e bem sucedida.

Só regressei definitivamente ao continente em Julho de 1975 e, por isso, não vivi os momentos quentes do pós-revolução.

67 anos, Aposentado

Maria Margarida Marques

No dia 25 de Abril de 1974 estava sozinha com o meu filho de um ano de idade e não ouvi rádio, pelo que saí de casa para o levar ao infantário. Ao lá chegar reparei que não havia nenhuma criança, as empregadas disseram que tinha havido qualquer coisa em Lisboa, mas não sabiam explicar o quê, disseram que podia deixar o meu filho e assim fui apanhar o comboio para ir trabalhar.

Ao chegar ao Cais do Sodré, eu e as poucas pessoas que atravessavam o largo, ficámos a olhar espantados para o alcatrão que estava todo esfacelado e, olhando para direcção do Terreiro do Paço, lá estavam dois tanques. O que estará a acontecer, pensei, mas decidi continuar o caminho até ao Largo do Chiado onde trabalhava na Seguradora Mundial.

Quando lá cheguei é que vi muitos soldados, muita gente e todos os meus colegas à porta da Companhia. O nosso administrador daquela altura disse-nos que fôssemos para casa que tinha havido uma revolução, mas, entretanto, ele próprio teve de entrar para ir buscar uma colega da secção de pessoal, que queria à viva força trabalhar porque tinha de fazer os ordenados.

Voltei então a ir buscar o meu filho a pensar muito feliz que ele nunca teria de ir para Angola ou Moçambique participar numa guerra que ninguém entendia, nem queria.

Nos dias seguintes também não fomos trabalhar, pois o jardim das traseiras do edifício da Seguradora dava para a rua António Maria Cardoso onde era a PIDE e estava ocupado por soldados. Quando voltámos, ainda se manteve por uns dias a presença duns soldados especiais, enormes, que estavam na entrada e era um pouco assustador.

A partir daí foi tudo coisas novas, reuniões a toda a hora e muitas mudanças, mas devo confessar que, apesar de estar feliz com isso, não entendia muito bem tudo o que se passava.

69 anos, Profissional de Seguros Reformada

Eduardo Francisco Rêgo

25 de Abril: não ouvi o E Depois do Adeus, nem a Grândola: as primeiras notícias, vagas, só de manhã a caminho da faculdade, já perto dos Leões, depois as primeiras impressões trocadas no Piolho, as primeiras confirmações…

Pela noite a liberdade já andava à solta e era sentida como certa e imparável…

Vivíamos numa prisão, mas estranha com os seus grandes janelões envidraçados — “víamos, ouvíamos e líamos não podíamos ignorar”… Dentro, o ar viciado, rarefeito, cada vez mais irrespirável… A sensação de liberdade do 25 de Abril não foi tanto a da súbita luz sobre recantos sombrios da prisão e abrindo ao espanto uma paisagem exterior desconhecida, mas mais a do ar fresco finalmente a circular, sair do sufoco, as janelas e portas finalmente abertas, um encher amplo do peito na frescura de um imenso alívio…

As mil dúvidas e interrogações, as incertezas, não traziam colados o medo e insegurança que voltam a trazer agora, 40 anos depois; não definiam, por si sós, por serem colocadas, campos à partida irreconciliáveis, destinos divergentes: essa fria realidade ganharia nitidez mais tarde, com o decorrer dos meses, com as primeiras fissuras a estalar o nosso deslumbramento…

Lembro-me da sensação, ilusória necessariamente, como se veio rapidamente a revelar, de haver uma universal comunhão em grande euforia e excitação, num propósito único e comum…Uma utopia de sentido único que a (quase) todos dirigia, era essa a ilusão.

A densidade de participação cívica e de coesão social foi a maior da nossa história, nesses breves meses, ou só semanas, que se seguiram. Essa é a minha grande saudade: a sensação dessa enorme coesão social, que via concretizar-se em acções conjuntas de muitos grupos de pessoas, solidárias e sonhadoras…

Mais do que as grandes memórias, do 1º de Maio, das multidões nas ruas, dos momentos de extrema emoção e simbolismo, como a chegada de Cunhal, que me parecem agora, à distância de 40 anos, de tipo fotográfico, lembro, de forma mais sentida, coisas mais pequenas mas em que participei directamente na ilusão dessa enorme solidariedade activa; as pequenas reuniões de trabalho com amigos e colegas a que se associava uma certa boémia de algumas noites em branco: como organizar o vazio das aulas que tinham parado naquele 2º semestre e o governo da faculdade…

A primeira grande RGA de Ciências, sem a ameaça dos gorilas, e a decisão de suspender deliberações porque se decidiu esperar pelo regresso de Ruy Luiz Gomes, prestes a chegar e que seria em breve Reitor da UP…

Depois, grandes decisões que hoje parecem tão erradas: a separação de engenharia e ciências (o maior erro); a grande perda pedagógica e científica que representaram os saneamentos de alguns professores que, na nova (des)ordem, já não tinham qualquer poder para influenciar negativamente, em termos políticos ou de governo da escola, o que quer que fosse…

O lirismo absurdo de certos aspectos dessa nova (des)ordem escolar, experimental: lembro-me de fazer parte, como representante dos alunos, de uma comissão científica das matemáticas e ter tido parte activa, juntamente com os professores que integravam essa comissão, numa reunião em que se decidida a proposta de dois professores passarem à categoria de ‘extraordinários’ (a categoria que mais tarde, com a lei Cardia, foi equiparada a catedrático!): e o meu voto também contou num dos casos!

As passagens administrativas e os súbitos regressos à faculdade e ao curso de antigos alunos: algum oportunismo sim, mas também a iniciativa de cobrir a paragem das aulas com aulas organizadas por nós com exposições de “novas” matérias: foram por certo aulas muito fracas pedagógica e cientificamente, nessa bondade anárquica, mas para muitos a sinceridade da intenção e da dedicação era enorme…

FIssuras: aos poucos mas céleres, apareceram, a crescer e irradiar como na cal das paredes: a anunciar a crua realidade da separação de grandes campos; ou somente a minha inadequação psicológica a certos níveis extremos de emoção e de escolha (uma fraqueza de angústia existencial, revelada então e que nunca superei…)

Com amigos e família, todos sentados no chão do Palácio de Cristal, a ouvir a canção de intervenção: não recordo os nomes de todos os artistas, nem as canções, mas que Paco Bandeira apareceu para participar e não foi aceite, não o deixaram cantar… E tive pena dele

A extrema-esquerda e a UEC na universidade (nem os tempos de crise, 40 anos depois, e a monstruosidade do adversário comum, conseguiram superar as eternas fissuras da esquerda).

Muitas discussões quase sem argumentos, reduzidas à repetição maníaca de classificações simplistas: fascista, reacionário, burguês (mas palavras tão úteis e descritivas, tanto então como hoje, para usar numa conclusão!)

Os primeiros grandes comícios, também no Palácio: a emoção extrema de um pavilhão cheio a clamar em uníssono e de punho no ar palavras de ordem, como “assim se vê a força do PC”, e eu não me conseguir juntar; não por divergências políticas, então, mas por uma insuperável timidez…

Passar no Palácio à saída de um comício do PPD e descobrir com misto de espanto e alguma desilusão alguns amigos e colegas…

O som de explosões em algumas noites no Porto: a anunciarem as mortes que a direita radical viria a fazer na forma mais ignóbil e covarde de terrorismo; a radicalidade da direita tem nisso o exclusivo na nossa história…

40 anos depois… Sobre a saudade e as enormes conquistas de Abril uma nova direita radical pratica agora um outro terrorismo igualmente ignóbil e covarde, de que tem também o exclusivo na nossa história, e a que alguns têm chamado “terrorismo social”…

Maria Anália Rosário Gomes

Eu tinha 19 anos e frequentava o 2.º ano da Faculdade de Letras de Lisboa. Estava hospedada em casa de pessoas de família. Recordo com clareza o som do telefone que nos acordou às 7h00 da manhã, e o alvoroço lá em casa… “Houve um golpe de estado, vamos lá a ver se é desta que acaba a ditadura”… ainda assim, durante algumas horas a dúvida persistia… podia ser um golpe de sinal contrário ao desejado, tanto mais que não havia notícias… ao longo de todo o dia o que se ouvia era a Marcha do MFA e alguns apelos a que a população não saísse de casa. E eu, miúda vinda da província há apenas 1,5 ano, imbuída de espírito cordato (“não te metas em política, tens mesmo é de estudar para não perder anos…”) e não querendo colocar problemas aos meus padrinhos, fui ficando por casa e aproveitei para me preparar para a frequência marcada para o dia seguinte. Que pena tenho hoje de não ter tido a lata de desobedecer às ordens do MFA e dos meus padrinhos para me manter em casa e não ter ido para o Largo do Carmo sentir o pulsar da revolução a acontecer… Mas o receio de que algo pudesse não correr bem impunha-se à curiosidade de saber o que se estava a passar nas ruas e à vontade de participar activamente na mudança.

No dia seguinte, já ultrapassado o receio inicial de que pudesse haver violência, dirigi-me à Faculdade para fazer a tal frequência de Linguística ou de Literatura, já não me recordo bem, mas é claro que não se realizaram mais nenhumas provas de avaliação até ao fim do ano. Eram RGAs (reuniões gerais de alunos) atrás de RGAs, emergiam os líderes (p. ex. Jorge Lemos, futuro deputado do PCP), tudo se discutia: os métodos de ensino, os conteúdos, o modelo de avaliação, a organização dos cursos. Foram meses de uma certa turbulência, em que o que era verdade hoje já o não seria amanhã. Mas tudo valeu a pena, em contraponto ao cinzentismo do estertor do regime de Salazar-Caetano. Estávamos a aprender a viver em LIBERDADE.

A explosão de alegria, contudo, verdadeiramente só no 1.º de Maio eclodiria em toda a sua pujança. Aí, sim, já ninguém ficou em casa. Foi a maior emoção alguma vez vivida em termos de vivências políticas.

Recordo outra: a oferta de um dia de trabalho a favor da comunidade (5 de Outubro, nesse ano calhou a um sábado), por proposta do 1.º Ministro Vasco Gonçalves (lembro o seu entusiasmo e carisma galvanizador), para comemorar a “vitória sobre a reacção” aquando da “maioria silenciosa”, iniciativa política de alguns sectores conservadores da sociedade portuguesa, civil e militar, que decidiram organizar uma manifestação, em 28 de Setembro de 1974, de apoio ao então Presidente da República, General Spínola. Mas a sua iniciativa não foi bem sucedida e o Presidente pediria a demissão em 30 de Setembro. Dessa vez a reacção não passou e o Povo português comemorou dando um dia de trabalho a bem da comunidade.

Lembro-me de que na minha aldeia nos organizámos em brigadas mistas de estudantes e trabalhadores e realizámos trabalhos de limpeza nos arruamentos da aldeia. E com que alegria o fizemos!

Foi um tempo lindo, de acreditar que é possível a alegria, a solidariedade, a liberdade praticada e vivida com sentido de responsabilidade pelo colectivo.

Cláudia Santos Silva

Eu tinha 9 anos e o meu irmão 7. Não fomos à escola. No final da manhã, o meu Pai chegou a casa feliz e, com os olhos rasos de água, disse: Agora já podemos falar!

Quando ligámos a televisão, a mira técnica tinha por música de fundo a marcha de libertação dos escravos, da Aida, de Verdi. Estávamos tão felizes todos, eu e o meu irmão nem sabíamos bem porquê.

Nos dias que se seguiram, começou um tempo novo. Na escola, a funcionária retirou os retratos de Salazar e Caetano da parede, suspirando que as colónias iam ser devolvidas aos pretos, vejam só, e nós que fizemos tanto por eles… Interrogado o meu Pai, vi cerrar-se-lhe o semblante, sentou-me nos joelhos e falou-me da guerra. E também da polícia política e dos presos, das perseguições, de Caxias e do Tarrafal. Só pensava no tanto que me tinham mentido.

Já não sei em que dia vi, na televisão, a libertação dos presos políticos de Caxias, mas lembro-me do meu Pai embargado de comoção.

Uns dias mais tarde, a população de uma aldeia vizinha da cidade onde morávamos, fez uma manifestação a reclamar eletricidade. De noite, com as velas, os candeeiros de petróleo, as tochas, as candeias penduradas nos carros de bois, atravessaram as ruas da cidade às portas da qual viviam. Eram dois mundos diferentes, como o de outras tantas aldeias pelo país fora.

Um tempo novo começara.

Antonieta Maria dos Santos Mota Marques

Tinha dez anos e frequentava o 5º ano. Estava na Escola  antigo Ciclo Preparatório  e, durante uma das aulas, começaram a entrar pais para levarem os filhos consigo. Achei estranho porque notava-se algum alvoroço entre os adultos e percebia-se que a professora estava agitada. A certa altura entrou um elemento do Conselho Diretivo, falou qualquer coisa com a professora e, de seguida, disse-nos:
 Hoje não vão haver mais aulas. Todos vocês devem dirigir-se imediatamente para casa. Não parem para falar com ninguém e vão junto às paredes. Vão depressa para casa.

Lembro-me de ficar assustada e de cumprir direitinho as instruções.

Quando cheguei a casa, o meu pai, que trabalhava por turnos, estava a pé a ouvir notícias na rádio (a RTP só iniciava as emissões à tarde). Disse-lhe o que se tinha passado na Escola e perguntei-lhe o que tinha acontecido. Foi então que ele, chorando, me abraçou, me disse para não ter medo e me contou que tinha acontecido uma coisa muito boa: Portugal passava a ser, desde aquele dia, um País livre onde todos podiam dizer o que pensavam e sentiam.

O meu pai já faleceu. A ele devo toda a consciência política que tenho, bem como o melhor de mim. Lembro-me dele em muitas situações mas, a da manhã do 25 de Abril é uma das que nunca esquecerei.

Rui David

Foi há uns incríveis quarenta anos e quase parece impossível. 

O dia 25 de Abril de 1974 não se afigurava promissor. Era mais um dia em que estava previsto eu entrar a salto no Técnico, iludindo a vigilância da polícia que o cercava. Fazia-o duas ou três meses por semana, havia uns três meses, saltando o muro num ponto onde os polícias de patrulha não tinham normalmente ângulo de visão, graças ao côncavo formado pela rotunda da estátua do António José de Almeida. As calças que eu vestia normalmente ficaram em casa da minha Mãe e ainda hoje ostentam, nos joelhos, restos da caliça que se desprendia do muro quando nele roçavam enquanto eu tentava erguer-me até ao topo.

Eu e cerca de setenta outros colegas estávamos expulsos desde o início do ano lectivo. Esta fora a tentativa do então director, António Salles Luís, de erradicar a subversão no Técnico, intimidando os estudantes com veleidades oposicionistas, e que participassem em qualquer acção de protesto, com a expulsão imediata — o que, passados vários meses desde o início do ano, ainda se verificava com alguma frequência — e, sobretudo, de impedir a contaminação dos novos alunos do primeiro ano pelos gérmenes da política — o que, naquele tempo, só podia significar problemas para o normal desenvolvimento das actividades pedagógicas. A Associação de Estudantes estava, como muitas outras, encerrada pela polícia.

Eu tinha sido encarregue, pelo grupo de activistas a que pertencia, de precisamente introduzir esse vírus entre os estudantes do primeiro ano. Expulso, a única forma de entrar no Instituto era a salto, e depois tentar contactar discretamente estudantes do primeiro ano e lançar as bases de Comissões de Curso, formas básicas de organização dos estudantes na defesa dos seus interesses pedagógicos.

Sinceramente, quando me propuseram a tarefa, duvidei muito da sua exequibilidade. Mas o certo é que, por pura sorte — uma sorte que o “ar do tempo” propiciava , eu tinha topado, a partir de contactos furtivos, feitos à entrada e saída das aulas, com um grupo excepcionalmente inteligente, corajoso e dinâmico de jovens colegas, que rapidamente puseram o primeiro ano, que o Director julgava estar protegido “da política” numa redoma, em polvorosa. Por pura sorte, também, e ao arrepio das probabilidades, nunca fui surpreendido por nenhum Nívea de passagem, durante os dez segundos que me demorava a saltar o muro e entrar nos jardins das traseiras, ou, quando saltava para o exterior, nunca fui detectado por nenhum polícia ou contínuo, nunca nenhuma das nossas reuniões, feitas no jardim do lado da Rovisco Pais, despertou curiosidades indesejadas, nem fui detectado quando assisti a acções de reinvindicação no interior de anfiteatros apinhados de estudantes, uma delas, uma monumental pateada ao atónito Director.

O certo é que não era fácil, psicologicamente, manter aquela rotina, por muito que, uma vez lá dentro, as reuniões e o progresso acelerado da constituição do núcleo duro, organização, debate de perspectivas e sugestão de acções, fossem uma descarga de adrenalina. Sobretudo porque havia sempre aqueles dois momentos críticos, a entrada e a saída; e ainda mais porque não havia fim à vista de um regime que parecia eternizar-se.

Nas circunstâncias em que me encontrava, as perspectivas não eram brilhantes. Encaixar-me no sistema, era ainda possível, sim, mas parecia-me uma perspectiva ainda menos brilhante.

Nessa noite, excepcionalmente, dormira em casa dos meus pais, já que naquele tempo levava uma vida de nómada sem poiso certo, circunstância que, por paradoxal que possa parecer, me agradava bastante, apesar da rigorosa frugalidade que lhe estava associada. Por outras palavras, andava a pé e comia repetições nas cantinas universitárias porque não tinha um tostão no bolso.

A minha Mãe, sempre em alvoroço com o meu estilo de vida, por mim e pelos prejuízos que hipoteticamente poderia fazer à carreira do meu Pai, acordou-me por volta das oito da manhã, pedindo-me para não sair de casa, porque havia uma Revolução e estavam a dizer na rádio para ninguém sair de casa. O meu Pai, oficial da Marinha, diligente e bem comportado militar do quadro, saíra de casa muito cedo para se apresentar ao serviço na rua do Arsenal, onde estava colocado, julgo eu que no Centro de Comunicações da Armada. Mas a minha Mãe, não sei porquê, tinha um verdadeiro pavor de revoluções — um dia, em criança, ainda nos anos cinquenta, fomos surpreendidos, na Baixa, por uma carga da GNR a cavalo, e tenho perfeitamente na memória a imagem de um GNR de sabre brandido a gritar, do alto do cavalo, para um manifestante ou transeunte, enquanto um desconhecido ajudava a minha Mãe a esconder-se comigo e com a minha irmã na entrada de um prédio.

Para mim, uma revolução só podia ser um golpe militar, e naquela época, ninguém dos círculos que eu frequentava confiava um milímetro que fosse nos militares. Na pior das hipóteses, seria o temido “golpe do Kaúlza de Arriaga”, um general que era a referência da extrema-direita e a perspectiva da radicalização/brutalização do regime. Na melhor das hipóteses, as movimentações militares, de que chegavam ecos desde o 16 de Março, eram vistas, no ambiente em que eu me movimentava, com um desprezo bem patente no título inesquecível de um artigo de um panfleto clandestino ligado ao PCP (m-l) : “Insubordinam-se os mercenários do capital”.

Preparava-me para ir para a rua saber novidades e decidir o que fazer, quando meu Pai regressou a casa. Contou, com a sua habitual ironia muito contida, que no Ministério, ao passar por um buraco estranhamente aberto numa parede, quase fora atropelado pelo Ministro da Marinha, o corpulento almirante Pereira Crespo e outros responsáveis do regime, que por ele fugiam. Não ouvi mais detalhes porque saí para a rua.

Ao chegar às imediações do Técnico, não havia polícia a cercá-lo e os portões do lado da Alameda estavam abertos, sem o famigerado sistema de controle de entradas. Havia um ajuntamento à porta do Pavilhão Central.

Quando me aproximei, discursava empolgadamente um assistente conhecido como o “Pai Abreu”, pai do dirigente da Associação do Técnico e futuro vereador da Câmara de Lisboa, António Abreu. Outros estudantes discursaram. Do meu grupo falou o Rui Lobão, cuja intervenção terminou, para alguma surpresa minha, com a palavra de ordem: “Pão, Paz, Terra, Liberdade, Democracia e Independência Nacional”. Surpresa, porque se trava da palavra de ordem de uma organização política clandestina e eu ainda estava em modo 24 de Abril e, até esse dia, o meu grupo fazia, por vários motivos, uma separação muito clara entre actividades estudantis e actividades políticas.

A mim parecia-me errado, para não dizer estupidamente imprudente, uma pessoa assumir publicamente a simpatia por uma organização política clandestina sem se saber exactamente o que se estava a passar. Por outro lado, achava um absurdo que essa organização estivesse tão próxima das lutas estudantis, quase replicando a promiscuidade suicidária entre militantes estudantis e revolucionários, que se criticava ao MRPP. Infelizmente, esse pressuposto, no que significava como fragilidade de uma organização que se vangloriava nos panfletos clandestinos de um forte apoio popular e operário, era verdadeiro, ainda que no caso concreto não passasse de mero voluntarismo ditado pelo entusiasmo do momento.

A multidão apinhada à porta do Pavilhão Central decidiu reabrir a Associação de Estudantes, havia muitos meses encerrada pela polícia, na sequência da prisão do seu presidente, Carlos Costa, num comício na cidade universitária. E é tudo o que lembro do dia 25 de Abril.

A partir daqui é o blackout. Um blackout seco, sem sequer a dimensão épica da deriva gratuita de um Luiz Pacheco transportado numa névoa etilizada pela periferia dos principais focos de acção. Uma amálgama de imagens fugidias que tanto podem ser do dia 25, como de um qualquer dos outros, até ao Primeiro de Maio: a invasão do Conselho Escolar e expulsão do Director, pequenos comícios espontâneos, na rua, manifestações, aqui e ali, com mais e menos gente, mais ou menos espontâneas, a alegria nas ruas, a gradual transformação física que sobrevém quando o corpo se começa a adaptar ao facto de ocupar a rua sem a tensão e estado de alerta necessários para reagir a qualquer ataque da polícia, previsível ou inesperado, tantas vezes na forma de pides à paisana ou de níveas surgidos do nada. Alívio. Página em branco. Tudo em aberto. O resto é História.

António Lança de Carvalho

Ainda não eram oito da manhã quando o velho e pesado telefone de baquelite tocou. Era um amigo a avisar de movimentos de militares. Sentei-me com o meu pai no escritório, ele estava de cara fechada…”O Almeida Bruno preso na Trafaria, mais aquela palhaçada da brigada do reumático, isto pode ser uma golpada do Kaúlza e companhia…”, dizia ele, de si para si.

Ligámos a televisão…Mira técnica! Ligámos o rádio, Rádio Clube Português…Marchas militares, nada de elucidativo! Passados momentos, ouvimos o comunicado do MFA, o rosto do meu pai desanuviou-se: “Queres ver que é desta!”, exclamou, e correu para o telefone. Eu fui espreitar pela janela do meu quarto: a Casa da Moeda estava cercada por blindados. Vesti-me à pressa e passados poucos minutos estava a oferecer-me como voluntário ao furriel que comandava as tropas!

Ele sorriu, pousou-me a mão no ombro e disse: “Obrigado, mas não deve ser preciso!”

Fiquei desiludido! Então havia uma Revolução e nem sequer me davam uma espingarda?!?

Voltei para casa. A rádio relatava o que se estava a passar na zona do Terreiro do Paço como se fosse um relato de jogo de futebol!

Fui a pé, do Saldanha até à Baixa. Quando lá cheguei, já o epicentro dos acontecimentos se tinha deslocado para o Largo do Carmo. Foi para lá que me dirigi.

O Largo era um mar de gente que os soldados continham a custo. Os transístores (pequenos rádios portáteis, para quem não sabe) repetiam incessantemente o apelo do MFA para que a população se mantivesse em casa… Em vão!

Foi lançado um ultimato para a rendição do quartel do Carmo. Os militares tentavam desesperadamente convencer as pessoas a evacuar o largo e a protegerem-se, mas éramos cada vez mais e sem qualquer intenção de sair dali. Tenho hoje a noção de que aquele mar de gente teria tomado o quartel “à unha” se necessário fosse!

Depois veio a notícia da rendição e a chaimite que havia de levar Marcello Caetano. A pouco, a multidão foi dispersando, embora se notasse que não sabiam o que fazer a seguir. Alguém disse que os Pides estavam a fugir da António Maria Cardoso pelos telhados…

De nariz no ar, à procura de Pides, lá fui para a António Maria Cardoso. A multidão não era tão grande como no Largo do Carmo, mas era compacta. Gritava-se “Morte à Pide!” a plenos pulmões.

De repente, das janelas choveram tiros. Ouvi silvar as balas, vi pessoas cair ao pé de mim, outras atropelando-se na debandada. Vim a saber mais tarde que tinham morrido quatro pessoas; o número de feridos acho que ninguém nunca saberá…

Voltei para casa lá para as nove e meia, provavelmente quando o meu corpo me lembrou que ainda não tinha comido nada nesse dia!

Contrariamente às minhas expectativas, o meu pai nem se zangou com o meu “desaparecimento”! Limitou-se a soltar um “Até que enfim que apareces!”, de alívio.

Rádio e televisão estavam ligados, o telefone não parava, a nossa casa — e o País — era como um enorme caldeirão de magma em ebulição!

Ficámos os dois à espera de notícias.

Cerca da meia-noite e meia, veio a comunicação da “Junta de Salvação Nacional”. Em silêncio, íamo-nos entreolhando, à medida que eram apresentados os elementos da Junta. “O Silvério Marques?!?”, exclamou o meu pai. Ouvimos com atenção a “proclamação”. Lembro-me, no fim de ter dito ao meu pai: “Pois é, pai, isto não foi uma revolução, foi um despertador”. Ele nunca mais se esqueceu desse meu comentário!

Os dias seguintes deram-me razão: as primeiras “guerras” foram pela libertação incondicional dos presos políticos e pelo estabelecimento do 1º de Maio como feriado. Ganhámos ambas!

No primeiro “1º de Maio” lá estava eu, grão de areia nesse enorme orgasmo colectivo!

Foi a primeira — e até hoje, a última vez — que eu tive essa sensação de se ter cumprido um destino, não no sentido fatalista, mas no sentido de devir, de algo que tinha DE SER!

Nunca mais fui o mesmo, não me arrependo e não desisto de tudo com o que colectivamente sonhámos! E, como diz o meu querido José Mário Branco: “E sempre que Abril aqui passar, dou-lhe este farnel para o ajudar!”

João Villela Cabeço

Após uma aprendizagem valente em 69,70, quando estudava em Coimbra, já com os meus 18 anos, ouvindo, entre outras coisas, a Rádio Argel   A VOZ DA LIBERDADE (Estudante), percebi que o regime salazarista estava a apodrecer. Meti-me na conspiração ao poder, acompanhando os colegas em muitas acções que nos solicitavam. 

Em Maio de 69, todos os dias, apanhava porrada dos bófias. A PIDE meteu-se no nosso caminho e, identificado como revolucionário, não tardou que me fizessem a folha. 

Em 11.01.71, interromperam-me os estudos e mandaram-me, como a outros colegas, para a tropa. Depois, fui para a Guerra em Moçambique. Não desertei a pedido da minha querida Mãe, nada faria que a contrariasse. Miliciano, mobilizado em Agosto de 72, fui parar logo a Tete, em Moçambique. Por aí estive… e voltei a arranjar problemas com o Martins, chefe da PIDE /DGS.

Em Fevereiro/Março de 74 , estive em L.M. numa reunião conspirativa/informativa do que se estava a passar na Metrópole. Soube, por exemplo, que tinha havido algo muito grave num quartel em Lamego e, a seguir, deu-se o golpe das Caldas da Rainha!

No 25 de Abril, estava em Comissão já no Distrito da Beira, em Moçambique.
Pela rádio militar, soubemos: um golpe de Estado em Portugal! Ficámos incrédulos e, ao mesmo tempo , muito eufóricos! Quis sair do Quartel, vir novamente para a capital de Moçambique, mas já não havia condições. Fiquei no mato com os outros Camaradas. Recordo-me que, em Moçambique, o CMDT/Chefe N. aderiu logo ao MFA. 

Começaram, então, logo as negociações com os guerrilheiros da FRELIMO.
Já com 25, 26 meses de guerra, regressámos para, em Lisboa, aderirmos ao MFA.
A partir de Outubro de 74 , fiz várias intervenções ao lado do MDP/CDE, com o J. Manuel Tengarrinha  e  Margarida  Tengarrinha e outros democratas da época, como o pedagogo Rui Grácio, meu conterrâneo e grande amigo.

Seguiram-se anos de militância activa no Partido Socialista.

Eng.º João Cabeço, Vila REAL

Fernando Pereira

Quinta-feira, 25 de Abril 1974. Um dia que tinha tudo para ser como os outros, mas que para mim já era demasiado importante. Vesti o fato que os meus pais me ofereceram nos anos, pois tinha combinado encontrar-me nessa tarde com a minha namorada.

Sai cedo de casa, em Algés, e notei, de facto, que as coisas estavam estranhas na rua. Um ambiente diferente. Os comboios não iam tão cheios como habitualmente. Havia movimentações fora do comum, assim como as expressões das pessoas. E apercebi-me de que algo importante tinha realmente acontecido. Talvez algo há muito esperado.

Cheguei à escola, mas estava fechada, não havia aulas. Andei um pouco pela rua, ao longo do passeio, onde logo encontrei os meus colegas e companheiros inseparáveis das lutas estudantis contra o regime da ditadura. Iam acompanhados pelo professor Emílio Quesada, conhecido entre nós por ser militante do MRPP. Nesse dia e naquela hora, já ele nos dizia à boca cheia que o que se estava então a viver era uma revolução social-fascista, que tinha por trás pessoas como o Spínola e outras grandes figuras do poder militar. E que tudo aquilo era uma tentativa cosmética de “democratizar” o sistema e impedir a revolução da classe operária, a verdadeira revolução dos trabalhadores.

Independentemente dessa particular opinião, decidimos festejar alegremente aquele dia e tentar viver bem de perto o que realmente se estava a passar. E lá fomos todos, com muito alarido e entusiasmo para o centro da cidade, o coração dos grandes acontecimentos

Na Baixa, vivia-se um ambiente fantástico, absolutamente incrível. Não dava para passar para o Terreiro do Paço, estava completamente vedado por militares. Conseguimos então passar por trás do Município, vindos do Cais do Sodré, deslocando-nos até à esquina da Rua de S. Julião, no cruzamento com a Rua Nova do Almada e, aqui, junto às instalações que pertenciam ao Banco de Portugal, estava formado um grupo de atiradores, talvez um ou dois pelotões em posição de descanso. Eram cerca de 30 a 40 homens e, ao passar ali em frente, eles chamaram-me:

— Ó puto, chega aqui! A malta já aqui está desde madrugada sem nada para comer. Vocês não arranjam uma bucha aqui para o pessoal?!

Olhei para os meus colegas, para o relógio, já eram quase 11 horas da manhã. Perguntei-lhes quanto tinham no bolso, juntámos o dinheiro e fomos um pouco mais acima, na Rua Nova do Almada, à Casa das Limonadas, que vendia na altura todo o tipo de sandes, sumos e refrigerantes.

Lá nos embrulharam uma quantidade de sandes e levámo-las aos militares ao fundo da rua. Demos tudo o que o nosso dinheiro podia comprar e ainda muito mais Foi a primeira boa ação do dia em prol da tropa revoltosa.

Depois, eu e os meus amigos subimos pela Rua do Ouro, passámos por aquela incrível apoteose no Rossio: foi um momento verdadeiramente fascinante, comovente mesmo. O que estava ali a acontecer era algo tremendo. Havia homens, mulheres, jovens em delírio e a celebrar, gritando: Viva a liberdade!Lembro-me de uma senhora idosa, felicíssima, de lágrimas nos olhos, dizendo em alta voz que pensava já um dia morrer sem nunca assistir a algo assim, ao fim da ditadura Era uma alegria, uma emoção e acontecimentos de facto indescritíveis.

Então, subimos a Rua do Carmo, em direcção ao Chiado e deslocámo-nos até à Rua Nova da Trindade, onde tudo se começou um pouco a complicar.

Na zona de cima, estavam parados vários carros blindados e militares da GNR, com os capacetes, as espingardas e as baionetas, que então usavam, apontadas para o fundo da rua, e mais abaixo, pelotões do exército, com carros de combate e espingardas G3, apontadas para cima, no sentido contrário. No meio destes dois grupos de forças, em plena linha de fogo, estavam várias centenas de pessoas, gritando e festejando, o que impedia, perigosa mas felizmente, qualquer troca de tiros entre as forças militares, um consequente banho de sangue. Havia um grande alvoroço e, no ar, uma enorme tensão. Curiosamente, nesta altura, ainda não havia cravos; também não havia bandeiras que identificassem partidos, sindicatos ou outro qualquer tipo de organizações, havia apenas gente que gritava: Viva a liberdade! Abaixo o fascismo! Morte à PIDE!

Nisto, andava um sujeito que aparentava ter talvez uns 18 ou 19 anos, vestido com uma camisola branca de malha muito justinha ao corpo, umas calças à boca-de-sino e cintura alta, o cabelo bastante comprido, a circular pelo meio da multidão com uma enorme bandeira portuguesa. Havia outras, mas dificilmente se encontraria por ali uma assim tão grande. Juntámo-nos a esse grupo.

Descemos novamente até ao Chiado e entrámos na Rua António Maria Cardoso, sem perceber que nos estávamos a dirigir para a boca do lobo. Éramos cerca de 200 pessoas a descer a rua onde ficava a sede da PIDE-DGS. Quando chegámos à porta do Teatro São Luiz, já ali havia um grande alvoroço e confusão, com muito burburinho e toda a gente a gritar: Morte à PIDE! Liberdade!

Quando um primeiro grupo se aproximou mais do fim da rua, então a PIDE soltou um cão, um pastor alemão, que atacou prontamente os manifestantes. Foi rapidamente neutralizado com pontapés e paus que as pessoas levavam nas mãos.

No seguimento, os homens da PIDE, à paisana e vestidos com o seu tradicional fato e gravata, abrem as janelas, colocam em posição as metralhadoras e pistolas Walter e varrem a rua, num enorme tiroteio. Houve talvez pessoas mortas de imediato e muitas outras que ficaram feridas. Escondi-me inicialmente num recanto do prédio do Teatro S. Luís, um espaço onde só caberia uma pessoa, mas que tive de partilhar com outro homem, permanecendo imóveis até ao fim daquele tiroteio: a PIDE descarregava literalmente as munições sobre a rua e as pessoas… Os projéteis faziam ricochete, batiam em todo o lado. Foi algo que ainda durou alguns minutos sem parar, até que subitamente se fez um enorme silêncio.

Então, assistimos a um fenómeno curioso: com esta pausa, as pessoas iam saindo debaixo dos carros e de todos os lados onde se puderam proteger, e a rua ia se enchendo de novo. Mas foi aí que se reiniciou o tiroteio, a segunda grande rajada, muito maior que a primeira. Não sei quanto tempo durou de facto, mas a mim parecia-me uma eternidade. Eu, que já estava a correr, saído do recanto onde me escondera, desatei de novo à procura de um esconderijo. Pareceu-me ver a porta de um prédio aberta, mas não, tratava-se apenas de uma folga da fechadura numa porta em madeira já envelhecida. Tentei forçar a entrada, sem sucesso, e foi nesse preciso momento que senti uma bala atingir-me no braço direito. Tentava desesperadamente abrir aquela porta, os tiros passavam de rajada, sem defesa possível. Vi os buracos no casaco, senti o calor e a pressão do projétil na carne, o sangue a jorrar. Fiquei completamente sem reação, parado no passeio, em pé, em frente à porta, com os tiros ainda a serem disparados pela rua e a passarem à minha volta. Foi então que um colega meu, que estava deitado atrás de um carro, gritou para mim:

— Venâncio, deita-te! Deita-te, meu! Atira-te para o chão!!!

Ato contínuo, ele puxa-me para o chão, salvando-me literalmente a vida naquele momento. De imediato começámos a rastejar, até que conseguimos fugir rua abaixo para a Travessa dos Teatros, correndo de seguida pela escadaria da travessa, completamente doidos, com o meu braço a sangrar. Havia militares mais abaixo, junto ao gradeamento que dá para o Teatro São Carlos, e prontamente me socorreram. Chamaram de imediato uma ambulância militar que me levou, juntamente com outros feridos, ao Hospital Militar Principal, na Estrela. Encontrei então um amigo meu, vizinho de Algés, cujo pai era militar e, como ele tinha caído de mota e ficado maltratado, também se encontrava por ali nas urgências:

— Então, Venâncio, também tu por aqui? Que aconteceu, foste ferido?!

— Parece que sim, fui apanhado numa confusão com a PIDE…

— Grandessíssimos sacanas… Eu já fui atendido e ia agora para casa. Queres que diga aos teus pais que estás aqui?

— Não, deixa estar. Os tipos dizem que não me podem tratar aqui, porque não sou militar e isto hoje é complicado. Estou agora à espera que me levem para São José…

—  Ok. Não te preocupes. Eu aviso os teus pais e digo-lhes que vais para lá. Vai correr tudo bem. Olha Viva a Liberdade! — Disse-me, abrindo os braços para me dar um abraço.

Fui transferido numa ambulância da PSP para o Hospital de São José. Ali fui devidamente tratado, onde me radiografaram, examinaram e extraíram do braço o respectivo projétil alojado. Depois de todo este processo clínico, já de braço ao peito e receita médica na mão, preparava-me para sair do hospital e regressar a casa, quando sou de repente abordado por um homem que me puxa pelo braço esquerdo:

— Onde é que tu pensas que vais? — Perguntou bruscamente o homem.

  Para casa.  Respondi eu. — Fiquei ferido num tiroteio e vou agora ter com a minha família.

  Não vais, não.  Foi a resposta daquele sujeito de fato escuro, que de imediato se virou para um polícia que se encontrava ali à porta das urgências e disse:

 Arrecada-me aqui este, que eu já cá venho. — Tratava-se, afinal, de um inspetor da PIDE-DGS.

Depois de algumas horas “arrecadado” no próprio hospital de São José, dentro da esquadra que ficava nas urgências, vi chegar o meu pai, que tinha recebido a notícia do meu ferimento e que, andando à minha procura, foi ali, ao posto da PSP do hospital perguntar por mim. Chamei-o em voz alta mal o vi. Olhou para mim muito sério, reparou no meu braço ao peito e perguntou de imediato ao polícia:

 Esse rapaz é meu filho, é menor, tem 15 anos, logo não é responsável por nada. Sou eu o pai e eu é que tenho de responder pelos seus actos. Não posso ficar aqui também preso com ele e acompanhá-lo para onde for?

O agente da PSP respondeu que não, eu estava agora ali detido à ordem da DGS e teria de aguardar instruções para saber o que se iria passar dali para a frente. Algum tempo depois a ordem da polícia política chegou, seríamos levados para a esquadra da PSP na Praça da Alegria ou para o Governo Civil, uma vez que a sede da PIDE-DGS já estava cercada por militares do MFA. De seguida, eu e mais 3 pessoas feridas pela PIDE durante os acontecimentos, fomos levados para dentro de uma carrinha da polícia e ali ficámos “depositados”, esperando ser transportados ao destino final. O meu pai dirigiu-se ao agente que estava ao volante da carrinha e repetiu o discurso que tivera antes. Prontamente o agente lhe negou a pretensão, ao que o meu pai ripostou:

— Então e se eu, por exemplo, lhe der um murro, o senhor guarda não me leva também preso aí dentro?

O agente respondeu:

— O senhor tenha calma Nós hoje andamos todos de cabeça perdida, mas acho que não vale a pena arranjar problemas. Ou na esquadra da Alegria ou no Governo Civil, em um destes locais o vai encontrar… Ele é menor, de certeza que não vai acontecer nada de grave.

Seguimos então, algum tempo depois, para o Governo Civil. À chegada, o local estava infestado de polícias, gordos, barrigudos, de farda cinzenta e com os famosos capacetes de viseiras medonhas, escudos e bastões. Atravessámos o enorme pátio no interior no edifício. Parecia o metro em hora de ponta, apinhado de polícias. E à medida que íamos caminhando, algemados, eles abriam alas para que pudéssemos passar entre eles, enquanto ao mesmo tempo olhavam para nós com ar de que, se pudessem, nos comiam vivos ali. Insultavam-nos entre dentes, como cães raivosos. Fui revistado várias vezes e, quando foi efectuado o meu registo de detenção, o agente de serviço perguntou-me a idade. Eu respondi: 15; e ele, curiosamente, registou 16 anos. Reparei no erro e voltei a dizer que tinha feito 15 anos apenas no passado mês de Março, ao que o polícia me respondeu:

— Cala-te! Eu é que sei o que tenho de aqui pôr!

Mandaram-nos imediatamente para o calabouço, onde muito tempo depois nos foi trazida uma sopa de legumes manhosa, absolutamente intragável e onde ficámos interminavelmente à espera do que ia acontecer. Ali dentro, não tínhamos a menor noção do que se passava lá fora. Alguns agentes tinham um rádio ligado, muito ao fundo, mas mesmo assim não conseguíamos ter a percepção do que, de facto, acontecia na rua. A certa altura passou perto da minha cela, à conversa com outro agente, um graduado da polícia, de farda cinzenta, botas altas e pinguelim, provavelmente um alto oficial de cavalaria da PSP. Aproximei-me das grades, virei-me para ele com a receita médica na mão e disse-lhe:

 O senhor oficial desculpe… já aqui estou há algumas horas detido e tenho esta receita que preciso de tratar, por causa do meu braço.

Ele olhou para mim, de cima a baixo, e respondeu:

— Eu quero é que vocês todos se f!

Passado mais algum tempo, vieram 3 agentes da PIDE-DGS e mandaram-me chamar. Levaram-me para uma sala contígua, tiraram-me fotografias de frente e de lado com um número ao peito, registaram-me as impressões digitais de todos os dedos das mãos, revistaram-me uma vez mais e viram minuciosamente todos os meus cadernos da escola. De seguida sentaram-me numa cadeira, com uma luz de tecto, mesmo por cima da cabeça. Parecia autenticamente a cena de um filme sobre a Gestapo e o tempo do nazismo. A partir daí e durante mais de uma hora, procederam a um detalhado interrogatório, entre cada pergunta ou resposta, eu levava pancada.

Estava a ser questionado sobre tudo da minha vida, quem eram os meus pais, o que faziam, quem eram os meus amigos, porque estava no Chiado e o que lá fui fazer, porque razão não fiquei em casa, já que o próprio MFA aconselhava toda a gente a fazê-lo, porque fui para o meio da rua gritar “morte à PIDE”, “assassinos” e “liberdade”. Eu tentava escapar às questões e respondi que não tinha ido lá por qualquer razão especial, que só fui atrás dos outros por curiosidade e a cada resposta que dava, era de novo agredido. Entre estalos, socos e pontapés, dos 3 agentes ali presentes, quem me batia mais era o fotógrafo. Ou, pelo menos, aquele que trazia a máquina fotográfica.

Depois deste inferno, com mais ou menos nódoas negras para contar a história, fui recambiado para a cela e ali fiquei junto com os outros pela noite dentro, enquanto a vida toda corria lá fora.

Já pela madrugada, apareceu finalmente um militar de farda verde. Deu instruções aos agentes da polícia para nos retirarem da cela e levarem até ao oficial de dia. Quando chegámos à sua presença, era um oficial militar, ali colocado pelo MFA. Sentimos todos um imenso alívio, uma sensação de felicidade absolutamente indescritível.

O militar deu-nos um verdadeiro sermão por não termos seguido as indicações de ficar em casa, mas disse também que compreendia o nosso entusiasmo e curiosidade de jovens. Sublinhou que podíamos ter esperado pelo fim de tudo para ir então para a rua festejar, em segurança, e que tivemos afinal muita sorte em não termos morrido durante o tiroteio ou por qualquer outro motivo. Felizmente nada disso aconteceu e tudo correu sobre feição, indo ao encontro dos objetivos do MFA. Depois, virou-se especificamente para mim e disse-me que o meu pai já tinha ligado e deixado indicações para que, quando saísse do Governo Civil, apanhasse um táxi para casa. E foi o que fiz.

Na rua, chamei de imediato um táxi. Cheguei entretanto à Avenida dos Combatentes, em Algés, onde residia e onde, em plena madrugada do dia 26 de Abril de 1974, tive então pela primeira vez na vida uma ovação, com todos os vizinhos e amigos, na rua e às janelas, aplaudindo calorosamente. E eu não tinha feito nada de extraordinário. Era apenas um jovem, como outro qualquer, vivendo uma história diferente dentro da própria história. Foi a primeira vez que vi o meu nome escrito em todos os jornais, citando-me na lista de feridos no 25 de Abril. Algo bastante insólito. Entrei em casa, a minha mãe e toda a família, de tão preocupados, estavam agora felicíssimos de me ver, abraçando-me e beijando-me enquanto me dirigia para a sala, onde o meu pai se encontrava ouvindo as últimas notícias da televisão e fumando o seu cachimbo. Ele, mais do que ninguém, era nesse dia um homem felicíssimo, pois a “sua” tão esperada revolução tinha finalmente chegado e saído vitoriosa. Por outro lado, estava também profundamente triste por tudo o que nesse dia tinha acontecido comigo, com todas aquelas angustiantes preocupações que lhe havia causado. Fui dar-lhe um beijo e abracei-o em silêncio durante uns momentos. Então, ele virou-se para mim, olhou-me nos olhos e disse:

 A tua sorte é teres já um braço ao peito, porque senão quem to punha era euQuantas vezes te disse para não te meteres nestas coisas? Que és ainda muito novo? Podias ter morrido Mas vai comer e descansar… Amanhã é outro dia.

Assim fiz. E o amanhã foi outro dia.

Fernando Pereira, cantor.